sexta-feira, 28 de março de 2008

Lembrar e esquecer: desejos da memória II

Sirva-mo-nos de um aforismo de Nietzs­che:

Fiz isso – diz minha memória. Não posso ter
feito isso – diz meu orgulho e permanece
inexorável. No final, a memória cede. 
Nietzsche aponta que entre memória e es­quecimento existe um embate onde a força da lembrança é vencida pela força do orgu­lho. O que está em jogo é a preservação da identidade contra a segregação que a ame­aça. A constituição de uma memória de­manda a exclusão daquilo que põe em cho­que a imagem que se procura preservar. 
O esquecimento é um ato que requer for­ças muito intensas para sua realização e pode ser pensado como libertador, como uma pos­sibilidade de sossego ou uma porta que permite a entrada do novo. Por isso, Nietzs­che critica as tendências do senso comum de tratar o esquecimento como uma determina­ção negativa, de não reconhecer seu carácter activo e positivo: “Esquecer não é apenas uma força inercial, como crêem os superficiais, mas uma força inibidora, activa, positiva no mais rigoroso sentido [...] o esquecimento é uma espécie de guardião da porta, de zela­dor da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia ha­ver felicidade, jovialidade, esperança, orgu­lho, presente, sem esquecimento”. (Nietzs­che, 1978) 
Neste jogo entre lembrar e esquecer, as imagens fotográficas cumprem seu papel: são legitimadoras de acontecimentos que queremos preservar. Cada fotografia que ti­ramos é uma maneira de dizer à nossa me­mória o que deve ser guardado e o que deve ser esquecido, numa tentativa de construir e comprovar um passado. Ao conservá-las ou contemplá-las estabelecemos um ritual de culto doméstico, através do qual reafirma­mos a nossa identidade no meio social em que estamos inseridos. 
A característica fragmentária da fotografia permite registar apenas aquilo que dese­jamos lembrar e possibilita escolher e cons­truir uma história fotográfica própria, mui­tas vezes diversa da verdadeira. O anseio por exercer controle sobre nossa própria fe­licidade nos incita a tirar fotografias, porque através da imagem transitamos o caminho da auto-ilusão.

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