sexta-feira, 14 de março de 2008

Olho, máquina e coração

No conto "A Aventura de um Fotógrafo", Antonini é um homem angustiado pela im­possibilidade de captar, através da fotografia, a essência das coisas. Nesta história, Ítalo Calvino (1993) ilustra com originalidade o corte e a fragmentação da realidade através da fotografia. Na medida em que o fotógrafo é obrigado a escolher apenas um momento e um ângulo determinado na continuidade do real, para Antonini, a única maneira de preservar vivências seria disparar pelo me-nos uma foto por minuto. Ininterruptamente, sempre e a cada instante fotografar.
A proposta absurda do protagonista do conto de Calvino nos faz pensar sobre algu­mas questões que resultam do corte que ori­gina as imagens fotográficas e em como esta fragmentação do tempo vivido se reflecte em nossa relação com a memória. Quando fo­tografamos determinamos uma ruptura, esta­belecemos os limites daquilo que queremos ver. Ao accionarmos o obturador, seleccionamos um instante e um espaço entre todos os outros possíveis. O resultado desta escolha é a fotografia. Esta selecção feita pelo fotógrafo torna-se, muitas vezes, a única referência de um passado esquecido, pois a imagem foto­gráfica pode ser guardada, revista, incessan­temente contemplada.
Partindo do quadro estático e bidimensio­nal que é a fotografia, iniciamos muitas ve­zes um longo percurso. Ela funciona como uma máquina que nos permite voltar ao pas­sado. Ao tornar-se perene, ao ser seu pró­prio contínuo, a fotografia nos transporta de um tempo cronológico a um tempo memo­rial afectivo, onde as lembranças fixadas na imagem substituem pessoas e acontecimen­tos reais que se perdem. Nessa viagem, no entanto, levamos o presente: nosso modo de ver, nosso corpo, nossa vivência. A subjectividade de nosso olhar constrói novos significados, transformando, com frequência, ima­gens aparentemente inalteráveis.
Para Fernando Braune (2000) esta capa­ cidade de estabelecer uma ruptura na conti­nuidade temporal faz inevitável uma aproxi­mação entre fotografia e simulacro, uma vez que o próprio tempo, de uma forma ou ou­tra, afasta a fotografia de nossa realidade. Ao longo dos anos a imagem fotográfica se re­veste não apenas de lembranças e de todo o manancial emotivo que elas evocam, mas também de uma excentricidade proporcional à distância que a apresenta em relação ao que somos e como percebemos o mundo no pre­sente.
Em outras palavras: com o decorrer dos anos, nossa percepção das coisas se altera, e com ela, nossos juízos de realidade e de valor. Na maior parte das vezes, lembrar é também uma maneira de recriar o passado. Como em uma ruína restaurada, novos e an­tigos materiais se misturam; o que desapare­ceu pode ser visualmente refeito, mas nunca trazido totalmente de volta.
A fotografia, como os espaços de nossa infância, depende do nosso olhar para construir significados. Como resulta de uma cisão determinada, com o passar do tempo ela perde suas amarras. Inserida em novos contextos, a fotografia se transforma em um fragmento difuso e intangível, aberto a qualquer tipo de leitura.
Amalia Creus

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