quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Girl-Scouts e Guidismo em Portugal

Confirmou-se no caso português a premissa enunciada por Michael Mitterauer: apesar de originalmente criado a pensar em jovens rapazes, o método escutista, gerador de associações juvenis de matriz eminentemente burguesa, manteve as raparigas afastadas mais tempo de jure que de facto.  O primeiro grupo feminino português a praticar escutismo foi, excluindo a primeira experiência macaense, o Grupo Nº 28 da AEP, criado em Março de 1916, e dirigido pela escoteira-chefe Maria Luísa de Magalhães, enfermeira. Esta relatou em 1960 ao Sempre Pronto, órgão oficial da AEP a partir de 1945, que Adélia de Melo Machado, mulher de Álvaro de Melo Machado, ensaiador da experiência pioneira, lhe propôs o desafio. Foi importante o apoio (e provável instrução técnica) de seu irmão mais novo, João Correia de Magalhães, antigo elemento do 3, anexo ao Liceu Pedro Nunes. O 28 teve uma existência efémera, não superior a dois anos, mas pôde, segundo a sua chefe, realizar diversas actividades de campo.
A UAP teve também, por muito breve período, em 1922, o Grupo Nº 17 de Adueiras, anexo à Escola Primária Ferreira de Macedo, em Gaia, fora do quadro estatutário criado três anos antes. Outras referências a mulheres nessa associação datam de 1926, sendo claro que o seu papel era o de beneméritas e angariadoras de fundos para os diferentes grupos. A mais provável explicação da não legitimação destas realidades é também a mais simples: o modelo do escutismo no feminino foi no momento inicial da sua experimentação bastante polémico, mesmo no panorama inglês, socialmente mais dinâmico e economicamente mais favorável a actividades de lazer. Neste contexto, Portugal, mesmo no cenário de mudança social criado pela implantação da República, não terá conseguido adesão ou aprovação de jovens em condições sociais de serem dirigentes ou filiadas.
O guidismo nacional e o guidismo em Portugal haveriam de realizar na década de trinta uma convergência de esforços resultante na Associação Guias de Portugal (AGP). Em 1926 o corpo docente da Oporto British School, na cidade invicta, Miss Denise E. Lester, no Funchal, e Maisie Norton e Palmira Ribatâmega, em Carcavelos, constituíram as primeiras companhias conhecidas, directamente dependentes do Bureau Mundial do Escutismo, que assim se mantiveram até à legalização da AGP.
Após um período de formação, entre 1931 e 1933, foi oficializada a AGP pelo Decreto Nº 23760, de Abril de 1934, e aprovados os seus estatutos pela Portaria Nº 7831, em Maio seguinte.A fusão do guidismo português com o girl guiding praticado pela colónia inglesa deixou marcas no corpo estatutário: à semelhança da AEP, a AGP estava organizada como uma federação de companhias (equiparadas aos grupos de escuteiros) com direcções autónomas, que podiam ser abertas (interconfessionais), semi-abertas (pluridenominacionais) ou fechadas (de uma só religião). A primeira notícia sobre as companhias data de Dezembro de 1935, e decorre duma entrevista de Judite Maggioly a Maria Guardiola, reitora do Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho e Comissária Honorária da AGP, para a Modas & Bordados, em que esta afirmava a importância do papel do guidismo. Em Fevereiro de 1936, a Joaninha, porventura o primeiro magazine das adolescentes portuguesas, tornou-se órgão oficioso da AGP; foi apresentada, logo no primeiro número, Maria Fernanda de Almeida d’Orey, Comissária Nacional guidista de 1934 a 1937. Existiam, ao todo, 18 companhias 110, distribuídas por Lisboa, Porto, Funchal, Angra do Heroísmo, Lourenço Marques, Beira e Luanda. Estimamos por isso, tendo em conta que uma companhia não poderia existir com menos de uma patrulha ou bando, que a dimensão regular era a de duas patrulhas, e que estas tinham sempre, pelos menos, uma chefe e uma ajudante, que terão existido nesse ano entre 160 a 300 elementos na AGP.
A partir de Setembro desse ano deixaram de ser publicadas quaisquer notas, informativas (ou de propaganda) relativas à AGP. Este silêncio foi motivado por dois acontecimentos marcantes do segundo semestre de 1936: a criação das organizações estatais femininas e a extinção da OEP. À Obra das Mães pela Educação Nacional (OMEN) pertenceram desde a primeira hora Fernanda d’ Orey e Eugénia Brandão de Melo, a primeira como membro da direcção executiva inicial e a segunda como vogal. Em 11 de Julho de 1936, na cerimónia de tomada de posse da Junta Central da OMEN, Carneiro Pacheco anunciou de forma clara a sua intenção. Avançou, em primeira mão, informação que havia de ser publicada por Portaria Nº 8488 do Governo, dois dias depois. Apenas um apontamento n’ A Flor de Lis confirma a ocorrência de um último Conselho Nacional da AGP, datado de 27 de Abril de 1937, em que havia sido constituída uma nova Comissão Executiva para o guidismo. O transvase das suas dirigentes para as organizações estatais já estava em curso, pelo que o abrupto encerramento das Guias de Portugal não mais terá sido que a consequência de uma resposta positiva do seu Conselho Nacional ao pedido expresso por Carneiro Pacheco. Fernanda d’Orey foi em Dezembro de 1937 indigitada Comissária Nacional Adjunta da Mocidade Portuguesa Feminina, exercendo esse cargo até ao seu falecimento. De acordo com o depoimento de Manuel Ferreira da Silva (então assistente e membro da Junta Central do CNE), o próprio e outras antigas Comissárias da AGP encetaram em 1952 reuniões para reactivação do projecto guidista.
O percurso de Maria Judite Furtado Coelho Parreira ilustra, em nosso entender, o destino de várias jovens e adultas interessadas numa outra forma de escutismo no feminino, antes e depois do encerramento da AGP. Havia sido publicado pelo CNS, em 1934, um primeiro conjunto de regras que permitiu a existência de mulheres – as “Senhoras das Alcateias” – nas chefias da I Secção, salvaguardando a inexistência de dirigentes do sexo oposto, salvo se parentes ou religiosos. Esta adenda ao regulamento original do CNS apenas legitimava uma situação já existente, e facilmente comprovável pela leitura do seu órgão oficial.
Judite Furtado Coelho Parreira, filha de Luís da Costa Leal Furtado Coelho, um dos primeiros professores de ginástica introdutores do método sueco, seguiu a carreira paterna, iniciando-se na docência de Educação Física em 1911. Antes de rumar a Luanda, em 1939, foi uma das primeiras mulheres a integrar os quadros auxiliares do CNS, como instrutora de ginástica da I Secção, na Alcateia Nº 21 de Lisboa. Com ela desbravaram terreno Maria Eugénia Vieira e Isabel Leal (OSN de 15 de Janeiro de 1929), entre muitas outras. O papel feminino na Chefia de Alcateia foi  desenvolvimento do anteriormente existente “Conselho Protector de Grupos”, composto por paroquianas que prestavam apoio catequético e financeiro às actividades de lobitos e scouts.
Para além do estrito trabalho nas chefias de I Secção, as Patrulhas de Estudo do CNE, modelo instituído no 1ª Congresso Nacional de Dirigentes ocorrido em Setembro de 1933, integraram na dinâmica geral de chefia as jovens Akêlás. A presença de mulheres dirigentes em Conselhos Nacionais só foi facto desde 1936: o seu voto tinha apenas valor consultivo, quando não eram meras observadoras. Vinha ainda longe o momento de aprofundamento do modelo de co-educação no seio da AEP e CNE, instituído somente no pós-25 de Abril de 1974.
in LUSITÂNIA SACRA XVI
A INTRODUÇÃO DO ESCUTISMO EM PORTUGAL
 de ANA CLÁUDIA S. D. VICENTE

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