sexta-feira, 4 de abril de 2008

Lembrar e esquecer: desejos da memória III

A imagem como fonte de memória e si­mulacro foi muito bem ilustrada por Ridley Scott no filme Blade Runner. Inspirado no romance Do androids dream of electric sheep?, do escritor Philip K.Dick, o filme tece uma história sombria sobre o futuro da humanidade, em uma das mais belas de­monstrações de amor à vida exibida nas telas do cinema. 
A trama do filme se inicia quando o blade runner Deckard é convocado pela polícia para eliminar cinco replicantes (andróides) de última geração, praticamente idênticos aos humanos, que haviam fugido de uma colónia interplanetária. Os andróides, que eram utilizados como escravos em minas es­paciais, escondiam-se em uma Los Angeles escura e labiríntica, onde chovia sempre e se falava um dialecto que misturava o inglês ao chinês e outras línguas. 
Ao contrário dos seres humanos, os an­dróides eram privados de memória própria, por isso não eram capazes de sentir e de ser livres como os homens. As lembranças que tinham eram resultado de implantes de me­mória pertencentes a outras pessoas e tanto sua existência como sua morte eram progra­madas. 
As fotografias têm no filme uma simbolo­gia especial: serviam para legitimar as falsas lembranças dos andróides. Em uma das mais tocantes passagens do filme, a andróide Ra­chel, por quem Deckard se apaixona, mostra para ele uma antiga fotografia, onde aparece ainda menina junto com sua mãe. Rachel, que não tinha consciência de sua condição de replicante, enxerga na fotografia uma ma­neira de comprovar suas lembranças e seus laços afectivos com outros humanos. Esta imagem, completamente falsa para o espec­tador, é o único indício que Raquel possui de seu passado, vivência que, na realidade, só existe na fotografia. 
Com este filme, que definiu um novo gé­nero pra o cinema de ficção, Ridley Scott apresenta uma projecção de nossos medos actuais. Vivendo em cidades superpovoadas e violentas, em um meio ambiente destruído e sob o domínio económico de grandes corpo­rações, homens e andróides buscam um sen­tido para a existência, lutando pela preserva­ção da vida e da própria identidade. 
Em geral, da mesma forma que Rachel no filme Blade Runner, acreditamos ter certeza das diferenças entre sonho e realidade. Cos­tumamos localizar em polaridades opostas cada um destes territórios: a realidade diz respeito ao dia, à luz, à lógica e a sabedo­ria. O sonho, ao contrário é um frequenta­dor da noite, “floresce nas trevas, como es­sas raras flores nocturnas que dão margem à imaginação e ao devaneio” (Schultz, 1998). Entre esses dois aparentes opostos, no entanto, muitas vezes são abertas brechas, fis­suras por onde estes dois universos se co­municam. Neste contexto, a memória pode funcionar como um território ambíguo, onde lembranças e imaginação se misturam. 
Devemos admitir que, para estabelecer uma relação entre fotografia e memória não basta limitarmos-nos à imagem. As particularidades da génese fotográfica, o fato de constituir-se como um índice meca­nicamente elaborado, ou sua capacidade de mostrar com perfeição detalhes do mundo real, são factores que, sem dúvida, afirmam sua credibilidade. No entanto, nossa relação com as imagens fotográficas se fundamenta em nossa disposição para construir uma realidade agradável tendo como ponto de partida a reprodução fotográfica. O significado de uma imagem reside por excelência em nossos próprios desejos e mecanismos afectivos. Cabe salientar que estudos sobre percepção e memória visual merecem ser aprofundados a fim de captar a singularidade da expressão fotográfica em sua relação permanente com a subjectividade do observador.

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