A literatura portuguesa perdeu uma das suas vozes mais singulares. Alexandre Borges assina um retrato de Mário Cabral, um escritor obcecado com o tempo e que viveu fora dele.
Os dias não estão para quem passe ao lado da entronização no panteão mediático. Talvez as coisas já não fossem fáceis no tempo de Van Gogh, mas o anonimato não seria certamente entendido então como pouco menos do que pecado capital. Hoje, o destino parece ter-se reduzido a duas hipóteses: ser-se muito conhecido ou não se ser ninguém – e não dá sinal de vir em breve a abrandar o ritmo ou mudar de rumo. Se não vai à TV, se não aparece no YouTube, se não consta da primeira página do Google, se não está sequer – OMG! – no Facebook, não existe. Mário Cabral foi assim. Nasceu em Angra do Heroísmo em 1963 e morreu, na cidade-natal, este mês de Agosto. Não aparecia no YouTube, não tinha Facebook, raramente ia à televisão e, ainda por cima, vivia na periferia da periferia. O panteão mediático não sabe, mas silenciou-se uma das vozes mais originais e consistentes da nossa literatura contemporânea.
Começou cedo e, aos 15 anos, já saberia que seria escritor. Em adulto, queimou tudo quanto produzira na adolescência – o mesmo exercício depurador que recomendava a todo o aspirante ao ofício que lhe aparecesse em busca de conselho. Durante anos, a sua escrita densa e difícil, profundamente simbólica quando em poesia e filosófica uma vez na ficção, em qualquer caso requerendo sempre ao leitor constantes digressões a uma preferencialmente variada bagagem cultural, esbarrou na porta fechada das editoras. Em 1995, publicou por meios próprios um livro de crónicas, “História duma Terra Cristã”, e cinco anos depois o primeiro com chancela: “O Meu Livro de Receitas”, doze poemas, um por cada mês do ano, exemplo típico da obsessão que mantinha pelo tempo e que a Pedra Formosa finalmente arriscara imprimir.
Estava à beira dos 37 anos, cedo em qualquer profissão, tarde para o mundo das artes, menos dadas aos late bloomers do que à irrupção fulgurante dos jovens talentos que, depois, com os anos e no processo de refinamento, se tendem a domesticar. A desproporção entre a escassa obra publicada e o volume dos inéditos que mantinha impecavelmente encadernados e organizados nas estantes de casa era um luxo raro a que há muito se conformara. Escrevia, cada vez mais, o que queria escrever, já nada preocupado em agradar a quem, pelos vistos, nunca conseguiria seduzir.
Ironia das ironias, foi precisamente então que se abriram as comportas da edição. Logo no ano seguinte, a Campo das Letras publica “O Livro das Configurações”, romance que se deixa ler como um diálogo platónico, entre figuras familiares em busca de uma tese: a de que cada um de nós traz em si o universo inteiro. Em 2005, foi a vez de “O Acidente”, história que começa com a morte de uma mulher à saída de uma igreja e evolui para questionar a realidade, recontando múltiplas vezes o episódio através dos diferentes ângulos daqueles que a ele assistiram, distinguido com o Prémio John dos Passos para o melhor romance publicado em Portugal em 2005-2006.
Mas é no volume seguinte que melhor se avistam e equilibram as múltiplas faces do autor: o filósofo lúcido e rigoroso, o poeta minucioso e erudito, o fervoroso intelectual católico. “Via Sapientiæ: da Filosofia à Santidade”, foi primeiro a tese de Doutoramento em Filosofia apresentada à Universidade de Lisboa e depois a obra publicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda, em 2008. Quinhentas páginas que hão-de afastar os incautos, mas um ensaio pouco menos do que obrigatório sobre a filosofia portuguesa – ou a sua inexistência – a partir de Teixeira de Pascoaes, Delfim Santos e Agostinho da Silva, e que constitui, na verdade, uma reflexão acessível ao leigo, onde o talento literário arredonda as arestas dos territórios de outro modo áridos do texto académico.
A partir de 2012, já na Companhia das Ilhas, publicou “Tratados”, 24 poemas para as horas do dia e da noite, e o derradeiro “O Mistério da Casa Indeterminada”, romance trágico lançado em 2016 que é também uma extraordinária elegia acerca da condição feminina. Fora isso, encontramo-lo disperso ao longo dos anos, em poemas ou contos, integrando colectâneas e antologias dedicadas à nova literatura portuguesa, incluindo edições no México, Estados Unidos da América e Lituânia.
E, no entanto, a entrada enciclopédica acerca da obra literária publicada é incompetente para falar do resto da vida. Para aqueles que o conheceram, Mário Cabral foi ainda e sobretudo o aluno brilhante de Filosofia, o professor que marcou mais de 20 anos de alunos – e provavelmente o único que tinha a educação e as boas maneiras entre os seus critérios objectivos de avaliação. Foi o pintor abundante que os amigos conheceram em privado, mas que o público ainda só teve oportunidade de ver numas poucas exposições nos Açores ou nas capas de alguns dos livros. Foi o cultor dos jardins a que dedicou muitas das horas da sua vida e que poucos adivinharão ao passar diante da “Casa das Tramóias”, a morada da família, tão conhecida dos taxistas da Ilha Terceira que a Mário bastava entrar no carro e dizer: “É para minha casa.”
Poderia ter ficado a dar aulas na Faculdade de Letras de Lisboa logo no final dos anos 80, mas decidiu regressar a casa para apoiar a mãe após o falecimento do pai. Como um Kant das ilhas, não gostava de viajar e foi já nos últimos anos de vida que saiu pela primeira vez do país, a propósito de um festival literário no Brasil. Disciplinado, metódico, extravagante e estóico, ao mesmo tempo excêntrico e conservador, congregava características que talvez não se esperasse ver conviver, tão pacificamente, na mesma pessoa. Estava tão à vontade no ambiente de um mosteiro como no da mais cosmopolita pista de dança. Terá celebremente pedido um copo de leite na primeira ida ao Frágil, a fim de testar se o estabelecimento seria mesmo tão inclusivo quanto lho garantiam os amigos (teste que, diga-se de passagem, a mítica casa terá passado com distinção). Seria o mesmo a passear na freguesia piscatória de São Mateus da Calheta, onde sempre viveu com excepção dos anos da Universidade, na Praça de São Pedro ou em Times Square, se acaso alguma vez o tivessem convencido a abandonar por uns dias os seus amados cães a troco de ver in loco tão exóticas paragens.
Escreveu muito, toda a vida, e reescreveu, no processo nunca acabado de quem sabe ser aquele o seu destino. Toda a sua obra é atravessada pela crítica à decadência do Ocidente, ao relativismo moral, à indistinção entre as condições masculina e feminina, à perda da transcendência, à falta de vontade do indivíduo na determinação da realidade, ao volume excessivamente alto do som da publicidade que não nos deixa escutar o tédio. Debruçou-se, uma e outra e outra vez, sobre “o século que Deus não quis”, o XX, mas alimentava porventura infundadas esperanças quanto ao XXI. Permitiu-se sempre, em poesia ou prosa, a recorrente aparição de miraculosos anjos redentores. Nos últimos três anos, os do cancro, encontrou um novo tema: o corpo, e acentuou o tom abertamente comprometido com o Catolicismo, em abundantes textos publicados na imprensa regional açoriana. Viveu o suficiente para descobrir, como escreveu no último livro, que as araucárias davam flor. As cerimónias fúnebres tiveram lugar na igreja de São Mateus, a poucos metros de casa, como se toda a sua vida tivesse sido apenas o movimento de passar de um lado para o outro daquela estrada, mas, pelo meio, tivesse conhecido e contribuído, como poucos, para divulgar uma cultura universal.
Não sabemos ao certo o volume da obra que Mário Cabral deixa inédita ou sequer se terá conseguido concluir a obra de uma vida, a “Casa das Tramóias”, que recebeu o nome da casa física e que deveria viajar entre décadas de memórias e ficção. Só a família saberá o destino a dar a esses textos, bem como às dezenas e dezenas (centenas?) de quadros que só as visitas conheciam. A Pedra Formosa e a Campo das Letras já fecharam, mas ainda está acessível a obra publicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda e pela Companhia das Ilhas. Nestes anos de hits e likes, hypes e views, cabe àqueles que tiveram o prazer e o privilégio de conhecer Mário Cabral a missão de fazer chegar ao maior número possível de pessoas a sua obra singular.
Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).
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