domingo, 12 de setembro de 2010

Touradas à corda

Tourada à corda em pleno Alentejo, no Alandroal
Há dias vi-me perante a necessidade de explicar a alguém o que era uma tourada à corda, esquecera quando anteriormente na conversa referira algo relacionado com a tourada, que essa é uma tradição da ilha Terceira. 
Apesar de já ter assistido a uma tourada à corda em pleno Alentejo, com touros vindos da ilha Terceira... Mas aqui no litoral é uma tradição desconhecida!

Nada melhor do que recorrer às palavras de quem tem melhores dotes de escrita do que eu:
 
As corridas de toiros à corda, verificam-se em qualquer ponto da Ilha, excepto na cidade e o seu número é ilimitado, começando em Maio e acabando em Outubro. Há as tradicionais, ou sejam as que se realizam todos os anos sempre nos mesmos lugares e em dia imediato às festas dos impérios, dos padroeiros das freguesias e festas de Santo António, onde o povo à margem da Igreja, se cotiza para as realizar. Independentemente desta há as ocasionais promovidas por um indivíduo ou grupo de indivíduos, moradores em determinado lugar. Assim, numa mesma freguesia há várias por ano. 
O número de toiros corridos é de quatro e a duração de tempo para cada um, é de meia hora. Do segundo para o terceiro toiro, há um intervalo de meia hora e de toiro para toiro, de um quarto de hora. As touradas começam às quatro da tarde, hora solar, e terminam ao pôr do sol. 
Para o pagamento das despesas com as touradas tradicionais - aluguer dos toiros, licenças, jantar dos pastores, foguetes e outras verbas - o dinheiro é dado pelas comissões promotoras das festas, cujas receitas, afinal, provêm de donativos do povo da freguesia, para a realização das mesmas. Para as touradas ocasionais, reúnem-se diversos indivíduos, que se cotizam entre si, quando não são por um só indivíduo geralmente terceirense rico que vem da América, de visita à família. 
As touradas de fama, onde são corridos toiros escolhidos a capricho das melhores criações da Ilha. Dá-se o nome de arraial ao lugar circunscrito para a tourada. A extensão é curta, pois em poucos casos excede quinhentos metros lineares e assim tem de ser para não cansar muito o toiro. 
Muito antes da corrida, começam a chegar mulheres para tomar lugar nas janelas, muros e balcões das casas para onde foram convidadas. Cerca da uma hora da tarde chegam os toiros. Há alguns anos duas ou três vacas enchocalhadas - vacas de sinal - com um avanço de cinco minutos, seguiam adiante para anunciar aos transeuntes, que atrás vinha manada de gado bravo à solta. Os toiros apartados num curral da criação, saiam para a estrada acompanhados de vacas bravas com chocalhos ao pescoço e de pastores, uns atrás, outros adiante, seguidos dos cães de pastor, animais muito ligeiros que prestam enormes serviços no ajuntamento ou tresmalhe dos toiros. Caminhavam devagar, mas, quando entravam nos povoados, acelerava-se um pouco a marcha para os toiros se não espantarem e tresmalharem à vista das pessoas que apareciam pelas janelas e balcões. 
Ao entrarem no arraial, essa marcha convertia-se numa autêntica corrida até chegarem ao toiril, ou seja um lugar reservado, em cerrado ou boca de canada, todo rodeado de armação de tábuas onde se encurralava o gado. No toiril havia uma gaiola, recinto onde embotavam o animal e lhe amarravam a corda ao pescoço pelo sistema de laçada. Hoje os toiros vêm metidos em gaiolas que são transportados em camionetas e postos em determinado local. Todo o trabalho assim se simplifica, como é menor o perigo da fuga de algum animal. 
Como quer que seja após a chegada dos toiros, o arraial povoa-se mais e mais. Caminha-se pela estrada, pelo terreiro ou pela canada aos encontrões. Ranchos de raparigas garridamente vestidas, alegram as janelas, varandas, balcões e muros das casas, como festões de flores. Os rapazes fazem-lhes frente, falam-lhes de boca pequena e dizem galanteios. Vendedores ambulantes com cestos de asa, em ambos os braços, vendem tremoços, milho e favas torradas, amendoim e pevides apregoando "Olha a fava nova!... Quintinho!... Olh'ós salgadins! ... " 
O movimento é intenso e as vendas - de grossos paus dispostos verticalmente a meio das portas, para não deixar entrar o toiro, estão pejadas de gente. Há tascas improvisadas nas pontas do arraial ou dentro dele em lugar seguro, oferecendo graciosamente como puxavante o molho d'unhas: cozinhado de favas escoadas deitadas em cestos forrados de feitos, de onde as tiram à discrição e, depois de descascadas, as ensopam num único prato com vinagre, sal e massa de malagueta, reduzindo o conteúdo, ao cabo de pouco tempo, a uma massa acinzentada de tanto chafurdarem. Mas isso não importa e ao grito de "íamos dentro" a tasca mais e mais se enche ao passo que o tasqueiro não tem mãos a medir para encher os copos de vinho de cheiro. 
Um foguete atirado do toiril, anuncia que se vai proceder à embolação. Depois de amarrado o toiro, a corda sai por uma fresta da gaiola e os homens da bolsa, começam a estendê-la para um dos lados do arraial em todo o seu comprimento. Pouco depois um foguete anuncia que vai sair o toiro. Toda a gente se dispersa atabalhoadamente, encontroando-se, empurrando-se, caindo. Uns trepam pelos buracos das paredes de pedra solta procurando poiso no cimo destas; outros escalam muros, outros refugiam-se nas vendas, nas tascas, ou na maior parte, procuram os extremos do arraial. Apenas alguns rapazes já graúdos se deixam ficar no caminho, a certa distância do toiril para verem mais de perto a saída do bicho e poderem capeá-lo. 
Então abre-se a porta da gaiola e um grande alarido anuncia a saída da alimária, que, numa correria veloz leva adiante de si toda a gente que se encontra no caminho, fazendo igualmente deslocar-se, numa fuga desordenada a massa dos pacatos que na extremidade do arraial se dispunham a ver sossegadamente a corrida ao longe. Atrás segue a outra massa dos pacatos, da extremidade oposta, que deseja ver o que se passa adiante. Então o toiro pára e em volta faz-se um terreiro, onde apenas um ou outro mais audaz se afoita a passar correndo em frente ao toiro arremedo de toureiro pelintra; mas precisamente, quando o animal se dispõe a arremeter, logo outro, abanando um casaco o distrai da primeira arremetida e assim por algumas vezes até que o animal toma a querença. A expectativa é geral. Os pastores do meio da corda tentam puxar a rês, que já não obedece aos acenos dos que a provocam. Limita-se a escavar e a rugir, de língua de fora e baba pendente dos beiços. Então apresenta-se um homem de guarda-sol aberto e cita a alimária a uns metros de distância. É a sorte de guarda-sol. 
Esquiva-se o homem à arremetida, enquanto o toiro desperto, voltando-se em sentido contrário àquele em que ia, leva atrás de si o que era a vanguarda e adiante, o que era a retaguarda, com o que se não contava. Os homens da bolsa viram a mão e procuram refúgio numa venda ao passo que os do meio da corda se atiram contra as valetas de bruços, à míngua de outro abrigo mais seguro e todos na ânsia enorme, desaustinada, do salve-se quem poder, correm desordenadamente. Há cambrelas e basta um cair para muitos outros também caírem. Para as mulheres e para quem está em lugar seguro, há estridências de riso, gargalhadas, vaias, assobios, em esgares de contorsões alvares, mormente quando algum se levanta esfarrapado de bragas à mostra nos fundilhos das calças. O toiro pára novamente, atónito, ofegante, esbaforido e reverte-se novamente à crença, como eles dizem. Das portas, das vendas, dos balcões, das varandas, das janelas, atiram-lhe com trapos velhos, batem as palmas e gritam: "Ê toiro"! O círculo de gente à volta da rês vai apertando, na confiança de animal cansado. Alguns aproximam-se em corrida veloz e tocam-lhe num galho; outros dão-lhe palmadas na nuca. 
Então um pastor do meio da corda, farto de ver "acanalhar o toiro", tenta pôr a corda sobre o lombo do animal e esticando-a atira-lhe uma vardascada violenta que o desperta. O toiro desperto pela chicotada arremete furioso e lança-se como um raio sobre a multidão enquanto que a corda desenrolando-se e esticando-se pela violência da corrida, atira com uns tantos incautos de encontro à parede ou ao chão em quedas espectaculares, tremendamente ridículas. Na frente não se contava com a corda falsa nem com este arranque formidavelmente súbito, e um dos fugitivos é colhido e esfrangalhado pelo animal. Das janelas, balcões e varandas, as mulheres soltam gritos de pavor, numa ânsia de pânico e da multidão levanta-se um clamor imenso. Homens afoitos correm para o toiro, pegam-lhe de cerneira e conseguem tirar a vítima das hastes do boi, enquanto que outros se agarram ao rabo e à cabeçada da corda para não o deixar arremeter. 
Estas colhidas, se na maior parte das vezes são cómicas e até ridículas, outras transformam-se em autênticas tragédias, chegando-se a tirar debaixo do toiro um moribundo ou um cadáver, ao passo que muitos têm sucumbido de lesões adquiridas nestas colhidas. Mas tais acidentes, trágicos que sejam, não impedem a continuação da tourada e o toiro livre da pega forçada, lá continua a carreira, levando na sua frente uma multidão e arrastando outra. Por vezes, investe contra a parede de um cerrado, pejada de gente e guinda para a parte de dentro, estabelecendo pânico e confusão. 
Uns saltam para fora, e outros inadvertidamente para o cerrado onde o toiro, em campo largo, arremete furiosamente contra tudo e todos, até que o tiram dali, à força de o puxarem pela corda. Novamente no arraial continuam as peripécias e assim continua o toiro a sua odisseia, até chegar a hora de o meterem novamente no toiríl. Um foguetão anuncia a recolha do cornúpeto, enquanto cá fora, no arraial o povo comentando as peripécias da corrida diz: "É um bicho de ruspeito"! Para os restantes toiros os factos repetem-se, mas, a corrida continua com o mesmo interesse e euforia.
fonte (Maria Alice Dias, in "Ilha Terceira", 1982) in Acores.com

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