O querer de Deus, o que Deus quer, está plenamente apresentado e demonstrado no bem que nos apresenta e demonstra o seu enviado Jesus Cristo com a sua vida no Evangelho. Evidentemente, o querer de Deus para o mundo está explicado pela frescura perene das Bem-aventuranças e na perfeita clareza do Pai Nosso.
Estes dois aspectos, de que nunca nos deveríamos separar como cristãos, resumem e sintetizam o núcleo do genuinamente cristão, mas o drama está em que nos custa admiti-lo, quando estes dois pilares do cristão estão firmemente baseados no coração do homem e no horizonte do viver dos homens e estes se dão conta de que isso é a base de todo o avanço possível e o vértice até onde tem que convergir os seus esforços para ser eficazes e efectivos de forma a conseguir ir vivendo em plenitude e com sentido; mas o drama está em que nos custa admiti-lo porque isso significa valorizar os valores de maneira inversa àquela como os temos valorizado. Nos parece que perdemos porque no lugar de procurar a felicidade onde está, preferimos procurar a segurança onde não se encontra. Isto, que é de uma simplicidade impressionante, os homens tem a triste faculdade de poder enredá-lo e complicar os factos que são essenciais para poder ir assumindo tudo o que acontece na vida de cada um e na vida da humanidade para ir conseguindo que cada homem e cada comunidade vão encontrando, no facto de viver com sentido, o meio de conseguir realizar-se nas suas circunstâncias concretas e avançar decididamente até à sua sempre possível maior plenitude.
Existem inúmeros homens que acreditam que a felicidade está em outra parte e que está a ser egoísta.
Precisamos de uma mudança radical e permanente até uma atitude e uma vontade capaz de assumir que numa abordagem do existir com sentido, o homem consiga ser sempre mais do que alcança num projecto de egoísmo e que tudo se torna diferente da abordagem tal como agora o entende a generalidade das pessoas.
O egoísmo, o orgulho e a ambição são sem dúvida as três directrizes que batem nas aspirações do homem moderno, e que na realidade não são senão reduções da natural aspiração do ser humano, respectivamente, de ser ele mesmo, de ser melhor e de ser mais. Sucede que ao substituir-se o objectivo da felicidade pelo da segurança, a pessoa crê que somente é ela mesma em confrontação egoísta com os demais; que somente é melhor se se sente e actua como superior aos do seu ambiente; e que somente é mais se alcança um nível superior de ter e de poder.
Quando o egoísmo, o orgulho e a ambição não se estão em xeque e debaixo de controlo, pelo afã superador de ser ele mesmo, de ser mais e ser melhor, crescem e se estendem com uma voracidade parecida à que produz o cancro no organismo, o que conduz a um estado obsessivo e obstinado que deixa a alegria de viver e a possibilidade de ver os demais como amigos e irmãos, e não competidores.
O egoísmo, o orgulho e a ambição não são o que mais vale porque não conduzem à felicidade. São sempre querer ser um pouco menos do que Deus quer e possibilita que sejamos.
Se bem que o perfil da realidade actual esteja muito longe do mundo que Deus quer, sempre rejeitamos unir-nos ao coro dos profetas de calamidades que denunciou João XXIII, e afirmamos que o mundo actual de nenhuma forma é pior que o de épocas precedentes, nas quais os valores da pessoa, sua liberdade e transcendência, ou a justiça ou solidariedade, não se valorizavam mais que como integrantes de núcleos e grupos reduzidos, e não como condição, sequer teórica, aplicável a todo o ser humano.
Deus quer o mundo tal e como o querem os homens em horas calmas. Esse momento em que a pressão dos preconceitos não assombra o coração humano e, por si só, entende qualquer pessoa que se fossemos capazes de acolher a ânsia de amar e ser amados, que radicalmente sentimos, e de fazê-lo todos ao mesmo tempo, num prazo muito breve, inferior ao de uma geração, desapareceriam as injustiças, a fome e a dor evitável, que é sem dúvida uma percentagem quase absoluta da dor real, estabelecendo formas de comunicação e convivência absolutamente novas ainda que sempre desejadas.
Estes momentos de “horas calmas” em que a pessoa sabe com certeza que o mundo pode ser a causa de todos e um vínculo de harmonia criativa até uma plenitude de todos em todos e em tudo, infelizmente, muitas vezes acabam com a sensação de fantasia e impossibilidade, ante qualquer rasgo de egoísmo, orgulho ou ambição de qualquer próximo, que nos devolve ao que entendemos como a realidade, quando não é senão o negativo do possível.
Sobre esta convicção, os Cursilhos são conscientes de que os reiterados intentos de melhorar o mundo fingindo obrigar os homens a que não se prejudiquem entre si, não respondem ao verdadeiro querer de Deus.
O projecto que para o mundo e a história contém os Cursilhos configura um itinerário cujo núcleo inicial e central se baseia na pessoa. Não é alterando bruscamente as estruturas de convivência que se consegue que o mundo avance na linha do querer de Deus; senão que é precisamente actuando sobre a pessoa concreta, individualmente valorizada, que pode alcançar-se uma linha de avanço.
E às pessoas não cabe pretender mudá-las nem melhorá-las desde fora, se se aspira a algum resultado que não seja puramente episódico e temporal. Se trata de reconciliar a pessoa consigo mesma, de facilitar-lhe o enorme descobrimento de que o Reino de Deus está "dentro de si mesmo” e projectar-lhe assim até à sua verdade mais verdadeira que é a sua dimensão essencial de pessoa capaz de amar e digna de ser amada.
Esta actuação centrada na pessoa é complementada pelo pensamento dos Cursilhos, projectando a sua dinâmica precisamente nos ambientes nos que já está actuando a dita pessoa para que proceda impregnando-os de amizade.
Ou seja, os Cursilhos não tentam melhorar as pessoas para que estas directamente se ocupem de mudar as estruturas de convivência e de poder que condicionam o mundo e a história, mas que tenham percebido que antes de este passo se requer outro muito mais essencial: que as relações interpessoais de convivência na família, no trabalho, na diversão e onde quer que se produzam, vão estando impregnadas de sentido e conteúdo amistoso para que depois, e de forma quase imperceptível, o novo ambiente de amizade que se crê gera ou exija um tipo de estruturas convivenciais explícitas consistentes com o sentimento colectivo preexistente. O mundo não se muda “pela força da lei” mais do que por um tempo muito limitado; melhora-se em profundidade somente quando se melhoram estavelmente as relações interpessoais nos ambientes comuns gerais e não só nos ambientes elitistas e privilegiados, religiosos ou de outra natureza.
O itinerário pessoa-ambiente-amizade é portanto o projecto que, entendem os Cursilhos, pode ir configurando o mundo segundo o querer de Deus, que como fica indicado, não é nem mais nem menos que o mais profundo e sentido querer do homem, ao menos nas suas horas calmas.
A originalidade e simplicidade deste planeamento não deixarão de convertê-lo em facilmente ridiculizável, especialmente por quem seguramente leva muito tempo tentando melhorar o mundo pelos complexos caminhos de dotá-lo de maior riqueza, impregna-lo de maior moralidade ou solidariedade, ou incrementar os seus níveis de cultura e comunicação. Tudo isso e claramente positivo nesta visão, mas enormemente complexo se não se plasma como uma consequência de um sentir generalizado nos ambientes humanos de busca de maiores níveis de bem-estar, de melhora das relações interpessoais e de plenitude do ser humano, é dizer, se não respondem a um clima prévio de amizade nos ditos ambientes.
O que sem dúvida pode resultar surpreendente para alguns é que o mundo melhor que os Cursilhos desejam ajudar o iluminar, não é um mundo pio e teocrático, mas um mundo real e substancialmente humano. No nosso horizonte, o “New York Times” não se teria convertido no “L'Osservatore Romano”, mas que ter-se-ia melhorado essencialmente na sua veracidade e na sua amenidade ao estar elaborado por profissionais realmente centrados na pessoa como origem e destinatário da notícia. Nós cristãos pecamos ainda muitas vezes pelo lastro medieval que nos induz a pensar que o aperfeiçoamento do mundo seria inerente a uma hipertrofia da Igreja-instituição.
O nosso mundo do futuro é um mundo secular em que Deus se alegra de reger precisamente o coração dos homens e não de ser utilizado por uns homens para reger os outros homens.
A segunda parte do Pai Nosso, na sua genial simplicidade, nos situa na perspectiva de pedir a Deus o pão nosso de cada dia, o perdão correspondido das ofensas e a evitação do mal. São as três necessidades essenciais do ser humano, de subsistência, de convivência e de carência de dano ou dor. Face a isto quase nunca se vê que na vida de cada pessoa, somente quatro ou cinco desgostos sérios se produzem de forma necessária e inevitável, enquanto todos os demais desgostos nós os criamos nós mesmos, ou nos criam os demais do nosso ambiente. Situar a pessoa na pista do possível é pelo mesmo fazer-lhe exequível a própria perspectiva de ser pessoa e a de sê-lo em amizade no seu ambiente natural.
Fomos planeados e criados para o amor e quando nos afastamos dele com o propósito de dedicar a intenção, o interesse e o esforço a outros ocupações que julgamos mais importantes, ao tropeço inesperado ou desesperado com a realidade ou no silêncio, à primeira possibilidade de reflexão, o arrancamos do nosso viver, mas não do nosso sentir mais profundo e a nossa intenção mais verdadeira.
Emerge de novo na realidade da nossa vida diária o amor, o sentido que não deixou de latir no nosso interior, e fazê-lo gerando uma tripla corrente de amizade connosco, com Cristo e com os demais, é iniciar, no que nos toca, a mudança do mundo segundo o querer de Deus, a verdadeira humanização da realidade.
Eduardo Bonnín
Francisco Forteza
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