Onze anos após a criação do primeiro grupo de escoteiros em Lisboa, o Arcebispo Primaz de Braga, D. Manuel Vieira de Matos, regressado do Congresso Eucarístico Internacional em Roma, tomou a iniciativa de fundar, com o apoio de vários leigos, um colectivo de boy-scouts católicos. A criação de patrulhas e grupos de escuteiros de uma só confissão religiosa iniciou-se pouco após os primeiros passos de experimentação e divulgação do escutismo, havendo no tocante ao escutismo católico “aval” do próprio general Baden-Powell 80, através da aprovação pública e recomendação da obra Le Scoutisme, escrita em 1922 pelo padre Sevin. Nessa obra, o sacerdote jesuíta encarregou-se de adicionar ao método powelliano uma espiritualidade assente no naturalismo tomista e na doutrina social da igreja, após nove anos de estudo e o expresso encorajamento do Papa Bento XV (1917). As associações decorrentes desta especialização escutista tiveram precedentes em Inglaterra (por impulso do Cardeal Bourne, c.1910) e na Bélgica (desde 1912), mas atingiram a sua maior expressão em França (desde 1914) e Itália (desde 1916).
Ocupando a sé durante o período da ditadura de Pimenta de Castro, em Outubro de 1914, Vieira de Matos dedicou-se (no seguimento do trabalho por si encetado anteriormente, na Guarda) à dinamização global da vida espiritual diocesana. A preocupação da Igreja Católica portuguesa com novos espaços e formas de sociabilidade, sobretudo a infantil e juvenil, datava de finais do século XIX – a sua fórmula associativa era genericamente conhecida por “Mocidade Católica” – agudizando-se com o agravamento do anti-clericalismo político registado no início do século XX. Neste contexto, em Braga, milenar e simbólico pólo católico, o arcebispo procedeu à reanimação da catequese, reorganizou os seminários locais e reiniciou o processo de mobilização dos leigos.
Durante a primeira reunião, em 24 de Maio de 1923, no N° 20 da Praça do Município, os onze envolvidos no projecto analisaram a hipótese de criação de um colectivo dependente ou independente das duas associações escutistas já existentes. Destaca-se da lista de presentes Franklin de Oliveira, anteriormente ligado à AEP, o mais vincado detractor de uma eventual fusão com a UAP. Escolhida a fórmula de um Corpo de Scouts Católicos Portugueses (CSCP) independente, foi delineado o seu futuro corpo estatutário; tanto a existência dos scouts católicos como os seus estatutos foram aprovados em alvará local pelo Governador Civil do distrito, apenas três dias depois.
A publicação da Portaria Nº 3824, do Ministério do Interior, a 26 de Novembro desse mesmo ano, enunciava a explicitamente o desejo de expansão do escutismo católico a todo o território português, mediante posterior aprovação estatutária. Num ambiente político de animosidade anti-eclesiástica, a recém-nascida personalidade jurídica do CSCP contou desde 1923, e mais intensamente desde a publicação do Decreto Nº 9729, de 26 de Maio do seguinte ano, com oposição declarada. Protagonizou-a no Senado da República Joaquim Pereira Osório, violentamente crítico da legalização de uma associação de católicos em que havia «eclesiásticos vestidos de escoteiros à frente dessa mocidade» com «fins tenebrosos» e o fito de «chamar a si a mocidade para a acorrentar à Igreja» 86, multiplicando «sucursais [sic] em Viseu, Vila Real e Braga». Em 1924, poucos dias depois da aprovação do Decreto Nº 9729, Pereira Osório, secundado por Álvaro Bulhão Pato, voltava a alegar a ilegalidade do CSCP, obra do «Arcebispo de Braga, reaccionário conhecido de todos». Apontava responsabilidades ao Ministro do Interior (Sá Cardoso), por ser já a associação «um adulto completamente desenvolvido». O Ministro explicou-se na Câmara, afirmando ter errado ao aprovar o requerimento feito pelo deputado Lino Neto. Desta questão resultou o Decreto Nº 9791, que anulou o Nº 9729. Apenas em Fevereiro de 1925, com o Decreto Nº 10589, assinado por Santos Ribeiro, o rebaptizado Corpo Nacional de Scouts (CNS) pôde voltar a existir oficialmente. Ao anterior estatuto e orgânica do CSCP foi extirpado o carácter confessional mais flagrante, não se encontrando consagrada qualquer menção directa ao catolicismo CNS. A título de exemplo, deixou de estar explícita a obrigatoriedade de professar o catolicismo, as Juntas Diocesanas passaram a designar-se Juntas Regionais, e é erradicado o artigo que colocava os scouts sob a autoridade da Santa Sé. Organizado em grupos, podia comportar diferentes secções etárias, como por exemplo uma Alcateia (grupo de lobitos) e um Clã (grupo de seniores). Segundo o diploma, os filiados começavam o seu percurso como scouts-aspirantes, a que se sucediam as provas de 3ª classe, 2ª classe, 1ª classe, e, em caso de excelência, provas para Cavaleiro da Pátria.
Logo no Verão de 1925, um grupo de quinze scouts peregrinou a Roma, por ocasião de um encontro internacional de scouts católicos, sendo a comitiva portuguesa recebida em audiência Papa Pio Xl. As palavras de encorajamento pelo progresso do escutismo católico encerravam o apoio da Santa Sé a esta e outras iniciativas de reapropriação do espaço anteriormente detido pela Igreja na sociedade portuguesa, ao mesmo tempo que dissipavam a reticência que alguns sectores do clero, mais tradicionalistas, manifestavam acerca da adopção de um método de raiz protestante. O CSCP/CNS foi sobretudo, no primeiro tempo do escutismo católico nacional, obra de Monsenhor António Avelino Gonçalves. Formado na Universidade Gregoriana, em Roma, em Filosofia e Teologia, aí foi ordenado diácono em Dezembro de 1917, e presbítero em Março 1918. A sua familiarização e documentação a propósito de tal método pedagógico, do modelo Sevin, e do movimento juvenil internacional terão sido adquiridas durante a formação na Universidade Gregoriana, e na capital italiana terá tido oportunidade de testemunhar o desenvolvimento da associação congénere.
A crónica fundacional do escutismo católico transmite a ideia de uma dupla paternidade, tanto por parte de D. Manuel Vieira de Matos, quanto de Avelino Gonçalves. Trata-se, em nosso entender, de uma velada analogia em relação à dupla Cornette / Sevin, fundadora dos Scouts de France. Tal como o cónego Cornette, possuidor de um maior capital de prestígio, D. Manuel aparece-nos descrito como o promotor da associação no seio da hierarquia católica e junto do poder civil. Qual padre Jacques Sevin, monsenhor Avelino é caracterizado como o jovem estruturador e impulsionador prático do projecto.
O desenvolvimento desta associação apoiou-se na rede paroquial e diocesana, secularmente instituída no território, pelo que, do norte para sul e do litoral para o interior, este escutismo se disseminou por todo o território, incluindo o insular e ultramarino. Durante os primeiros três anos a grande vitalidade ocorreu nas regiões de Braga, Porto e Leiria 91, e só a partir de 1926 se estendeu a Coimbra e Lisboa. Depois de cinco anos de actividade, em Março de 1928, e após algumas reuniões preliminares, o CNS firmou com a AEP um pacto com vista à constituição da Federação Escutista de Portugal (FEP), facto que permitiu o reconhecimento do CNS pelo Bureau Mundial do Escutismo. Em 21 Setembro, a Santa Sé acedeu ao pedido dos directores do escutismo católico português, concedendo autorização para celebrar missa em campo quando acompanhavam os scouts em actividade; binassem missa quando, como párocos ou capelães, estavam obrigados a celebrar nas suas igrejas; confessassem jovens escuteiros de uma diocese que não a sua. Esta prerrogativa mostrava por parte da Santa Sé o início de uma política de fundo que visava a aposta no método escutista como meio ideal de captação e manutenção de jovens na órbita do catolicismo, e precedeu atribuição semelhante concedida ao Scouts de France, congénere francesa.
Para a Organização Escotista de Portugal (OEP), criada pelo Decreto Nº 21434, de Julho de 1932, Gustavo Cordeiro Ramos, Ministro da Instrução Pública, nomeou seu delegado e presidente Vítor Manuel Braga Paixão. Até Agosto de 1936 este procurou homogeneizar ao máximo a instrução e actividades do escutismo português, que se traduziu num conjunto de alterações estatutárias e regulamentares, na equivalência de provas no sistema de progresso (3ª, 2ª, 1ª Classe e Cavaleiro da Pátria) e na distinção clara entre distintivos e uniformes.
A demonstração de vitalidade quantitativa do CNS prosseguiu no seu órgão oficial: mercê da criação de um Secretariado de Estatística, em Fevereiro de 1939, publicou-se informação coligida desde a fundação da associação. Demonstrava-se que, até ao início de 1940, 16261 indivíduos (dos quais 1008 escutas seniores, 9862 juniores, 53 marítimos, 4199 lobitos e 1319 dirigentes) haviam passado pelas fileiras do Corpo Nacional de Escutas (CNE), designação associativa naturalizada.
A mais difícil etapa de sobrevivência do CNE correspondeu, como verificado em relação à AEP e AGP, ao período compreendido entre 1936 e 1942. O marco inicial coincidiu com a transformação, por obra do ministro António Carneiro Pacheco, do Ministério da Instrução Pública (MIP) em Ministério da Educação Nacional (MEN), pólo essencial de doutrinação do regime; coincidiu também com deflagrar da Guerra Civil de Espanha, indissociável de um momento de recrudescimento fascizante no regime português. Aquando da extinção da OEP, as associações voltaram a regular-se pelos seus decretos fundadores, vivendo até 1942 numa situação de extrema pressão no sentido da dissolução; ainda assim, em termos quantitativos, o pico do efectivo nacional escutista conhecido entre 1911 e 1942 verificou-se em 1936, estando filiados nas três associações existentes (escoteiros, escutas e guias) 8000 escuteiros.
A estratégia do MEN em relação ao CNE foi, pela sua especificidade, bem menos simples que a utilizada nos casos da AEP e AGP. O Cardeal Patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira, foi por iniciativa do próprio ministro contactado no intuito de intervir positivamente no “fechar de portas” dos escutas, visando Carneiro Pacheco efectivar a «educação controlada integralmente pelo Estado Novo». Aquele eclesiástico não se mostrou de todo receptivo, defendendo de forma clara a especificidade e mais valia do trabalho dos escutas em relação à MP, à qual afirmava não dar «a sua absoluta confiança». Em 1938, esclarecendo a sua posição, Cerejeira endereçou ao ministro uma carta datada, significativamente, do dia de comemoração dos 33 anos do CNS. Recusava a participação numa concentração da MP e manifestava desagrado pelo convite da dirigentes da HitlerJugend. Numa outra missiva, em data imprecisa do Verão desse ano, o Cardeal louvava a obra de cristianização do ensino oficial português, mas recusava o pedido feito. Terá sido na sequência desta resposta que o ministro oficiosamente comunicou a Oliveira Salazar, em carta não datada, a inconveniência de «se ir para uma forma totalitária», sendo preferível uma «fórmula de independência vigiada». Para além da proibição de existência de qualquer associação escutista nas colónias portuguesas, pelo Decreto Nº 29453, de Fevereiro de 1939 (que a Igreja contornou a partir do seguinte ano, com base na Concordata e Acordo Missionário), eram ainda lembrados em 1989, a propósito dos 65 anos do CNE, os tempos em que o reitor do Liceu de Braga, Chefe Nacional Adjunto da associação, recusou o cargo de dirigente na MP, sendo em consequência colocado em espaço ultramarino, bem como o despedimento do chefe Nazaré (José Manuel Nazaré Silva?), dirigente da Junta Regional de Lisboa e funcionário do Ministério das Obras Públicas, na sequência da detenção por recusa de instrução à juventude estatal.
Não obstante, o CNE continuou a sua actividade, seguindo o mote dado nos editoriais d’ A Flor de Lis entre 1937 e 1938, de que é exemplo o da edição 14 de Maio de 1938, intitulado “O Escutismo Não Morrerá”. Em Março de 1942, a MP ganhou a tutela formal sobre todo o escutismo português: o Decreto Nº 31908 conferiu à MP o poder de aprovação de novos estatutos, onde ficaram firmados poderes de inspecção aleatória a qualquer grupo de escuteiros, bem como de irradiação de elementos considerados indesejáveis pelos graduados da organização estatal.
in LUSITÂNIA SACRA XVI
A INTRODUÇÃO DO ESCUTISMO EM PORTUGAL
de ANA CLÁUDIA S. D. VICENTE