sexta-feira, 21 de março de 2008

Lembrar e esquecer: desejos da memória

Num de seus contos – Funes, el memo­rioso – Borges nos mostra do que seríamos privados caso o esquecimento resultasse uma tarefa impossível. O protagonista, Funes, após sofrer um golpe na cabeça adquire dois surpreendentes talentos: uma percepção ab­soluta das coisas e uma memória notavel­mente poderosa. Capaz de narrar interminavelmente e com exactidão tudo aquilo que havia visto, ouvido, tocado, cada detalhe per­ceptível e cada instante vivido era imediata­mente convertido em lembrança.
 
O que Funes percebia nos mais mínimos detalhes em um dado momento era imediata­mente confrontado por uma nova percepção dessa mesma coisa junto às intermináveis nuances que uma mudança de movimento, iluminação e postura implicavam. O perso­nagem de Borges, diante de tantas memórias e percepções diversas de uma mesma coisa, sentia-se impossibilitado de compreender o mundo que o rodeava.
 
A formulação de um conceito implica pos­tular a identidade e a permanência de al­guma coisa; portanto precisa do esqueci­mento. Uma memória plena, como a de Fu­nes, que não se distinguisse da consciência, que não diferenciasse o percebido do lem­brado, não seria apenas insuportável, seria impossível. O esquecimento é imprescindí­vel para a evocação da lembrança e para a própria constituição da memória. Somente lembramos porque somos capazes de esque­cer.
 
Entre os tantos estímulos que nos chegam do mundo escolhemos, consciente ou inconscientemente, aqueles que guardaremos em nossa memória e aqueles que serão esquecidos. Poderíamos então perguntar: o que nos faz esquecer? O que estaria regendo nossas escolhas entre o que deve e o que não deve ser guardado na memória?
Amalia Creus

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