O escutismo possui uma compleição bifacial: comporta uma dimensão programática original, afim de uma corrente pedagógica específica, por um lado; e uma aplicação e institucionalização (de forma mais ou menos ortodoxa) em contextos culturais díspares, tornando-se o fenómeno juvenil com maior expressão planetária, por outro. Dada a orientação e abordagem historiográfica acima explicitadas, circunscreveu-se o presente trabalho ao estudo da aplicação e institucionalização do escutismo em Portugal, ou melhor, do instrumento educativo em acção. A primeira
dimensão do escutismo foi, assim, apenas referida ao seu serviço. A existência de um conjunto de indícios relativos ao escutismo português percepcionáveis no momento presente, materializados na existência de instituições duráveis com expressão quantitativa e territorial relevantes, produtoras de discurso e prática documentadas, foram base essencial para
este estudo. Não foi alheia, também, a familiaridade prévia, derivada da prática pessoal do escutismo, com os princípios pedagógicos, metodológicos e organizacionais desse fenómeno, vantagem e risco declarados num exercício científico que se pretende o mais objectivo possível.
Encetou-se, indispensavelmente, a sondagem de precedentes ao estudo do fenómeno, tanto a nível internacional quanto nacional. Foi sobretudo através do contacto com a associação “1907”, pólo coordenador de uma rede internacional de pesquisa sobre o escutismo e movimentos de juventude (maioritariamente no domínio da História, mas também da Sociologia e Eclesiologia) com sede em Paris, que pudémos verificar a produção universitária existente. Constatou-se que, até ao início de 2002, só em França (e, quase exclusivamente, sobre França), cerca de cento e cinquenta investigações foram feitas, sendo que, desde 1981, o seu número duplicou de cinco em cinco anos. Destas, a maioria diz respeito ao escutismo católico (61), sendo o escutismo francês de forma global (19) e o escutismo no feminino (14) sub-temas recorrentes. As restantes tratam, em número equilibrado, o escutismo protestante, judaico e laico, dedicando-se também aos ritos e literatura específica do movimento e às associações de jovens de outros territórios (como a Inglaterra, Suécia, Polónia, Guadalupe e Chile). Em número inferior, a federação escutista francesa e o escutismo islâmico foram também motivo de estudo. Para além desses trabalhos académicos, cerca de cinquenta monografias e artigos foram publicados naquele país. Dados recolhidos quanto à produção universitária espanhola indicam a existência de trinta trabalhos; a academia belga e italiana contam com uma vintena cada, seguidas da inglesa, canadiana e alemã.
Ponto de confluência entre todas essas linhas de investigação, um primeiro congresso universitário foi promovido em Chantilly, entre 4 e 6 de Novembro de 1993. Na sua esteira, a Universidade Paul Valéry (Montpellier III), entre 21 e 23 de Setembro de 2000, acolheu o primeiro colóquio internacional, intitulado Un Siècle de Scoutisme en Europe, congregando historiadores especialistas da área, e cujo conselho científico foi composto por individualidades como Marie-Therèse Cheroutre e Pascal Ory, da Universidade de Paris-I, Jean-Noël Luc, Universidade de Paris-IV e Jean Pirotte, da Universidade de Lovaina. A publicação e organização das suas actas, a cargo de Gérard Cholvy (em 2002), permanece como o mais recente ponto de situação da matéria. A dimensão internacional do fenómeno fica patente, num elenco de estudos italianos, franceses, belgas, espanhóis, israelitas, congoleses, canadianos e alemães.
A propósito do escutismo, foram em Portugal identificados três trabalhos académicos, todos no âmbito das Ciências da Educação. Ao contrário do ocorrido a nível internacional, estes atentam exclusivamente na sua dimensão programática. Carla Mira (et al.), no seu trabalho final de licenciatura, levou a cabo uma reflexão relativa ao processo de sociabilização no
escutismo, atentando no seu “sistema de patrulhas”. António José Santos desenvolveu uma síntese do potencial de relacionamento intergeracional do “jogo escutista”, materializando o seu projecto de licenciatura na formação de um agrupamento do Corpo Nacional de Escutas. José Carlos Novais Lima realizou, na sua dissertação de mestrado, a mais completa das
três investigações, abordando globalmente a metodologia educativa (actual, reformulada em 1988) do Corpo Nacional de Escutas, realçando o papel do jogo na auto-educação do escuteiro. Por não se tratar de abordagens historiográficas, apenas aí foram reproduzidas as resenhas históricas veiculadas pelas próprias instituições do escutismo português. Para além dos anteriores
trabalhos, apenas dois artigos de Paulo Fontes, estes sim de natureza historiográfica, abrem caminho ao conhecimento do escutismo em Portugal.
Perante tais precedentes, prevaleceu neste exercício o paradigma instituído pelos trabalhos dos historiadores franceses e ingleses.
in LUSITÂNIA SACRA XVI
A INTRODUÇÃO DO ESCUTISMO EM PORTUGAL
de ANA CLÁUDIA S. D. VICENTE
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