sexta-feira, 25 de novembro de 2011

De Scouting a Escutismo

Por razões de operacionalidade discursiva, optou-se por aludir às diferentes associações escutistas fundadoras através de terminologia coeva, usando os vocábulos aduarismo, escotismo, escutismo e guidismo (expressões derivadas de adueiro, escoteiro, escuta e guia); considerou-se que, por metonímia, melhor se distinguem as diferentes agremiações identificadas. Todavia, e em sentido inverso, perante a necessidade de nomear, de forma global, ao fenómeno resultante da aplicação do scouting em Portugal, constatou-se que, à época, nenhum vocábulo em língua nacional traduzia tal conceito de forma pacífica. Procurou-se, por isso, nas raízes e mutações etimológicas do jargão da especialidade – ilustrativas do próprio processo de criação e expansão inicial do método – resposta a tal problema.
Em complemento à sua carreira militar, Robert Stephenson Smith Baden-Powell foi correspondente em viagem de vários títulos da imprensa britânica, publicou obras relativas a caça desportiva e a episódios de combate, e elaborou programas de instrução militar no âmbito do reconhecimento e exploração do território. A exploração, ou scouting, a partir da divulgação feita nas suas palestras e opúsculos, sobretudo através de Aids to Scouting (1899), extravasou o âmbito de competência militar, cativando jovens estudantes e adultos britânicos de vários quadrantes sociais e geográficos. Entre 1900 e 1908 Robert Baden-Powell concebeu um método auto-educativo na forma de jogo para rapazes, daí em diante conhecidos por boy scouts. A pressão social para a adaptação específica do método ao género feminino levou Baden-Powell a conceber e publicar, no ano de 1909, um esquema dedicado às raparigas, a partir de então designadas girl guides. A referência ao movimento internacional e ao método utilizado foi daí em diante feita através da expressão scouting.
Tomando apenas por amostra uma parte da Europa Ocidental, o contraste entre a adaptação das duas designações não podia ser maior. Girl guide foi, de forma consensual e literal, traduzido para todas línguas germânicas e latinas, incluindo a portuguesa – passou, neste caso, de girl guide a guia. Já o termo boy scout (e, por derivação, o termo scouting) conheceu diferentes versões nacionais, desde a importação directa do anglicismo à tradução idiomática do mesmo.A título de exemplo, em Espanha, boy scout foi traduzido por esculta, explorador, minyon e scout; em Itália por scout, scaut, esploratore; em França, por scout e éclaireur .
Em Portugal, a primeira associação criada, a AEP, nascida em 1913, promoveu consulta pública prévia, n’O Século (entre Agosto e Outubro de1912), para a escolha da mais indicada versão lusa de boy scout e scouting, usados literalmente aquando das experiências iniciais decorridas entre 1911 e 1912. Vingaram os vocábulos escoteiro e escotismo, tanto pela aproximação fonética às expressões inglesas originais quanto pelo seu valor em português. A significação contida em Escoteiro, aquele que viaja sem bagagem, pagando por escote, servia bem o propósito e princípios subjacentes ao método, no qual se acentua o espírito de sacrifício e desprendimento em favor de Deus e da Pátria, em várias ocasiões definido pelo próprio Robert Baden-Powell como uma cavalaria dos tempos modernos. Apesar de usado até à actualidade, tal sentido associado ao termo Escotismo ficou circunscrito ao uso pelos seus praticantes; este não conseguiu impor-se como significado alternativo ou suplementar ao já estabelecido, o de sinónimo da doutrina e escola de pensamento inspiradas em Santo Agostinho e criadas por João Duns Escoto (1265-1308), filósofo e teólogo escocês.
Inspirado na valência específica de preparação pré-militar contida no programa de Robert Baden-Powell, Artur Barros Basto, fundador da UAP, extraiu da antiga terminologia castrense portuguesa as palavras adueiro e adaíl, de raíz etimológica árabe, fazendo-as corresponder a boy scout, o rapaz, e scout master, o dirigente. A dissemelhança entre esta terminologia e a cunhada pela AEP derivou da necessidade de diferenciação do aduarismo, cuja fundação ocorreu apenas um ano depois da AEP, bem como do propositado acentuar da originalidade e tónica nacionalista da UAP.
Após as primeiras tentativas de organização sob a forma de Corpo de Scouts Católicos Portugueses (1923) e Liga Portuguesa de Scouts (1924), o Corpo Nacional de Scouts (CNS), oficializado em 1925, seguiu o exemplo do escutismo católico francês e italiano, adoptando literalmente os termos ingleses scout (elidindo boy, somente utilizado e relevante em língua inglesa, para distinguir o batedor ou explorador do exército do rapaz praticante do método de Robert Baden-Powell) e scouting. Ao fim de vários anos de debate interno promovido pela A Flor de Lis, órgão oficial do CNS, da utilização informal dos anglicismos referidos e, por vezes, da própria terminologia da AEP, foi em 1934 decidida a naturalização do termo scout. A oficialização ocorreu aquando da reformulação do regulamento geral da associação, também ela rebaptizada. Foi feita a lusificação fonética literal das expressões inglesas, e forjadas as palavras escuta (cuja afinidade com a significação da divisa, “Alerta”, a tornou relativamente consensual) e escutismo, e transformado o CNS em Corpo Nacional de Escutas (CNE).
Nos anos seguintes os termos escutismo e – curiosa fusão das expressões usadas pelas duas associações mais representadas no país (a AEP e o CNE) – escuteiro consagraram-se no discurso social generalizado e na produção de referência da língua portuguesa (dicionários, vocabulários e enciclopédias). O mesmo mas não sucedeu com o jargão restrito às próprias associações, o qual permaneceu imutável até ao presente.
No contexto semântico da terminologia inventariada, optou-se pelos últimos vocábulos referidos, os quais se nos afiguraram os mais adequados para a tradução desejada de boy scout e scouting. Escuteiro e escutismo transportam não apenas sentido referente a um fenómeno histórico especificamente nacional, como também um significado associável à globalidade das experiências ocorridas.
in LUSITÂNIA SACRA XVI
A INTRODUÇÃO DO ESCUTISMO EM PORTUGAL
 de ANA CLÁUDIA S. D. VICENTE

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